domingo, março 26, 2006

Essa noite.

Silêncio na cidade
Só o som da chuva
Que chia sob nossos olhos.

Sentada na janela ela olha o vento
As gotas chovendo lá do céú.
Seu corpo esguio apoiado sobre o parapeito do terraço
O cabelo jogado atrás do ombro. Cabelo longo e loiro.
Olhando o movimento desta noite silenciosa, enquanto a escrevo aqui.

Ela diz:
...o quê você está escrevendo?
Eu tomo um gole do vinho. Um vinho argentino (Benjamin Nieto) comprado no Brasil.
...escrevendo. Nada.

sexta-feira, março 24, 2006

Pastiche

Emplastro de idéias
Encargo de misérias
Tudo o que é
Isso que sou
Singularmente demente
Podre e empoeirado
Como uma inútil pilha de livros
Na cabeceira de quem nunca lê.
Porque ninguém lê,
Ninguém quer.

E se quisesse alguém
Como poderia eu saciar essa vontade,
Se não tenho nada a dizer,
Eu, esse covarde?

Se tivesse algo para dizer me calaria,
Seria mais sensato,
Não escreveria.

quarta-feira, março 22, 2006

Meu filho

Adormeci no sofá da sala com a Tv ligada. Despertei com o barulho da porta sendo aberta. Silvia entrou e me viu, ficou parada alguns momentos olhando para minha cara com uma expressão absurda no rosto. Começou a chorar copiosamente, bateu a porta com violência e se aproximou de mim.
Pensei que fosse me abraçar.
Me cuspiu na cara e me deu um tapa.
Saiu da sala e voltou com um envelope.
Me expulsou de casa e trancou a porta. Havia um bilhete dentro do envelope.

"Seu filho morto,

você sumiu uma semana antes de confirmada minha gravidez. Te escrevi todos os dias, liguei para seu celular até desentupir a privada e descubrir que ele que a estava entupindo. Chamei a polícia, procurei a mídia. Gastei uns dois anos te procurando. Agora que já não tenho mais esperanças escrevo isso para desbafar. Se um dia você aparecer de novo te dou esta carta pra ler.

Sua mãe morreu. Ela ficou dois meses no hospital, isso foi um ano depois que você sumiu.
Seu filho nasceu lindo. 4 kilos, um bebê saudável, olhos verdes, quase sem cabelo. Sorridente.
Seu filho morreu 4 anos depois que você sumiu. Ele já estava falando, vivia perguntando do pai.
Morreu asfixiado com um pedaço de carne entalado na garganta."

domingo, março 12, 2006

Casa Vazia

Entrei em casa. Me surprendeu os móveis ainda estarem nos mesmos lugares. Quando muito havia mudado alguma planta. Na cozinha um fogão novo, o antigo mal servia para esquentar a água. Passei pelos corredores, abrí a geladeira, que estava quase vazia. Em meu quarto havia roupas de mulher jogadas no chão, uma garrafa de Uísque pela metade, uma taça com restos de vinho. Cinzas de cigarro e um sutiã. No banheiro as habituais calcinhas penduradas nas torneiras, que costumavam incomodar quando abria torneiras, mas que agora quase me comoviam. Minhas lembranças tinham sabor amargo.

Foi doloroso ver a casa tomada por toda essa vida sem mim. Doía perceber a vida alheia continuando o seu deslizar no tempo. Ver o seu desgaste, e ver que tudo estava velho e empoeirado. E que essa que era antes a minha casa já não tinha nada de mim.

Era muito dolorosa também a ausência de qualquer coisa que fosse, para me receber. Queria que tivesse alguém me esperando, alguém que ainda estivesse preocupado com meu sumiço repentino.
Parti sem deixar bilhete de despedida, sem dizer nada, nem um breve "tchau, estou indo, um dia volto".

Não, nada. Parti sem dizer adeus e depois de cinco anos tudo já tinha voltado ao normal. Ou melhor, ao normal não, mas tudo, de uma forma ou de outra, seguia adiante. O vazio de minha ausência já tinha sido preenchido pela esperança de que eu estivesse morto, e pela falta de esperança de que eu ainda estivesse vivo. Ninguém mais esperava nada. Não havia nem um bilhete, para caso eu chegasse assim, sem aviso, em um dia qualquer. Enfim, numa segunda-feira, no meio da tarde.

Sentei no sofá e liguei a TV. Era estranho ouvir de novo esse português, esse tradicional apresentador de programa de futilidades, que fala de nada, que fala de gente que eu nem mais sei quem é. Novas celebridades. De repente entrevistam um grande desconhecido, e eu via todas aquelas pessoas na platéia gritando quando ele entrou no palco. E tudo que me era tão familiar já me havia escapado, e tampouco tinha sido familiar minha vida nesse intervalo até aqui. Familiaridade era uma coisa que já não conhecia mais, e foi o que me fez voltar. Não existe mais nada que seja familiar para alguém que deixou de existir por cinco anos.

Voltei para retomar minhas raízes que sem pensar eu abandonei há cinco anos. Minhas raízes que me conheciam mais que eu mesmo conhecia a mim, minhas raízes que me alimentavam de calma e previsibilidade, tudo que eu odiava quando parti e tudo o que eu amo agora. Sempre fui uma árvore grande e velha, cheia de imensas raízes, mas de uma hora pra outra me pegou uma sensação de que me faltava alguma coisa. Então decidi partir antes que me convencessem a ficar.

Não sei o que ocorreu neste lapso, não sei quem chorou, não sei quem sorriu. Imagino que a muitos deve ter doído, imagino um grande alvoroço, a polícia, apelos à imprensa, muito dinheiro jogado fora. Tudo por um simples capricho meu, por minha triste condição egoísta. E depois, quanto mais tempo passava menos vontade e coragem eu tinha para ligar e dizer que estava bem, para ligar e avisar que estava vivo e que era por minha vontade que não voltaria. Tinha medo também que a voz que me ouvisse também falasse alguma coisa que me convencesse a voltar. Tinha medo de ouvir choro, de ouvir grito, de ver como as pessoas que dependiam de mim estavam sofrendo, e saber que sofriam os que eu amava. E que me amavam, e que agora me odeiam.

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sexta-feira, março 10, 2006

Dias amontoados

Como é fácil sonhar
Esses versos míseros e mesquinhos
Cruzando a distância de uma janela,
Rápido como começou
Acabou e sumiu.

Esses dias amontoados
Sem glória e sem passado
Somando-se aos montes do tempo.

Me lembro do ano passado
Dentro daquele quarto
Meus olhos vendados
Tocando o desconhecido,
Do outro lado da janela.

Essa vida acumulada
Nas estradas, sobre o asfalto,
Correndo do mundo e do medo.

Escrevo uma carta eterna
Que nunca será mandada.
Escrevo dia e noite
Todas as palavras para o nada.

Poesia esturricada

O vazio
O olvido
O eco
Em meu ouvido.

Sob o sol do meio dia,
Esturricando a poesia,
Dilacerantes sonhos traçavam caminhos
Que levavam embora o que fora outrora,
A criança esperançosa e otimista
Cheia de planos para um futuro
Que não passou mas ficou no passado.

O eco de antigas cantigas,
Que não se canta mais nesta roda,
Refletia outro mundo lá fora
E aqui dentro eu invento um outro
Que me leva adiante
Um semblante de louco.

quarta-feira, março 08, 2006

Cismas insones

Flertando com as possibilidades infinitas
Infinito intangível, lindamente incompreensível,
Passando em nossos olhos todo o tempo e o tempo todo.

Quando será o fim do tempo?
O meu tempo hå de acabar, mas acabará em si o tempo?
Uma pergunta tão distante para uma noite insone,
Quando este acabar já tera escoado a ampulheta de minha vida, de minha memória e das minhas coisas.
Mas e se o tempo acabar amanhã?
O fim do tempo, não da matéria.

E será que tudo tem seu tempo?
Como uma receita de bolo:
Se você abre o forno antes da hora o bolo murcha e perde sabor,
Se você deixa ele tempo demais ele queima, começando pelo fundo. Pelos pés.
E como vou saber qual é o tempo certo,
Se a vida não tem receita?